Em 1968, John Lennon deixou George, Paul e Ringo constrangidos ao lançar o disco Unfinished Music No. 1: Two Virgins.
Na capa, em cima de uma nobre frase encomendada a Paul McCartney,
“Quando dois santos se encontram, a experiência nos faz mais humildes. A
longa batalha para provar que ele era um santo”, John e Yoko se
abraçavam, nus. Dentro, gravações experimentais tão subversivas quanto a
arte que as envolvia indicavam o início de uma fértil carreira solo. Two Virgins chegou às lojas dez dias antes do lançamento do White Album, e o choque provocado pela capa, não só entre os Beatles, mas no mundo inteiro, é caso de estudo nas enciclopédias do rock.
É também um retrato da multifacetada personalidade de John
Winston Lennon, nascido em 1940, em Liverpool, e assassinado em Nova
York, em 1980. Ao mesmo tempo em que foi um balde de lama na imagem da
banda mais querida do mundo (jogado por um criador cansado de aturar as
falsidades inerentes à projeção de uma carreira internacional), o nu de Two Virgins
pode ser visto por diversos ângulos: uma brilhante tacada de
autopromoção, uma pura e inocente declaração de amor, um grito
autodestrutivo, um vil surto em sua já deteriorada relação com Paul
McCartney, ou apenas um trabalho vanguardista de um dos gênios do século
20. Não há resposta errada, e isto faz de John Lennon o Beatle mais
complexo e, no olhar de muitos, o mais interessante.
Carente
Estes vários Johns - o gênio, o
beberrão, o misantropo, o romântico inveterado, o mártir, o marido
submisso - ganham vida em "As Cartas de John Lennon", coleção completa
de sua correspondência que chegou às lojas na segunda-feira passada, no
dia em que John completaria 72 anos. A coleção, concebida por Hunter
Davies, o único biógrafo autorizado dos Beatles, é em parte um agrado
aos beatlemaníacos, em parte o retrato de uma das personalidades mais
cativantes da história do rock.
Entre suas pérolas estão as
cartas que um apaixonado e carente John trocava com futura esposa,
Cynthia, enquanto os Beatles aperfeiçoavam suas canções na zona de baixo
meretrício de Hamburgo; uma perversa troca de farpas com Paul McCartney
depois do fim do grupo; e veementes cala-bocas em muitos críticos,
ativistas e músicos.
A primeira coisa a vir à tona são as
complicadas relações que John tinha com as mulheres. Sem pai, órfão aos
18, criado por uma tia que sempre o quis castrar, e colocar seu pênis
numa torta de maçã, de acordo com o próprio, John encontrava a salvação -
ou a perdição - nos braços de mulheres como Cynthia Powell, seu
primeiro grande amor, para qual escrevia, ainda aos 18 anos, cartas de
amor adolescente. Uma delas ocupa uma página inteira com a frase I Love
You, que tem o mesmo tipo de paixonite de outra carta, escrita anos
depois, quando John já se separara de Cynthia e casara-se com Yoko, em
que uma série de perguntas de uma revista holandesa, sobre cantores,
filmes, cores e hábitos é respondida com a palavra "Yoko", e as
respostas de Yoko com a palavra "John".
Os desenhos de John e
Yoko, e de Cynthia e John também costuram a narrativa do artista
apaixonado, pronto para entregar sua autonomia a mulheres fortes
Reprodução da versão brasileira do livro The John Lennon Letters
Impiedoso
A genialidade e o humor de Lennon
permeiam toda a sua correspondência, em que faz trocadilhos de forma
incessante, escreve em inglês falso-shakespeariano e imita sotaques.
Notas de um diário que compunha quando jovem são particularmente
excêntricas e criativas. Mostram, no começo, a curiosidade infantil, tão
crucial para a sua arte, que o músico manteria até o fim da vida.
Entretanto,
ao mesmo tempo que podia ser submisso e "fofo", em suas relações
íntimas, John era também impiedoso e cruel com quem o incomodasse. Uma
resposta, datada de 1969, para um ativista, que criticou a revolução
pacífica de Lennon e Yoko, é cortante. Outra, clássica, endereçada a um
crítico do "The New York Times", que acusou os Beatles de roubarem a
música negra americana, é um ácido tapa de luvas: "Não cantávamos as
nossas músicas nos primeiros tempos - elas não eram tão boas, verdade -,
a única coisa que sempre fizemos foi informar que as originais dos
negros existiam, que amávamos a música... Não foi um roubo. Foi amor",
escreveu.
Reprodução da versão brasileira do livro The John Lennon Letters
Inimigos.
As brigas com Paul McCartney depois que os
Beatles se separaram, em 1970, têm um capítulo próprio. Neste se
encontra a carta mais impressionante do livro. John dispara contra Paul e
sua mulher, Linda: “Eu espero que vocês percebam a merda que vocês e o
restante dos meus amigos ‘amáveis e abnegados’ jogaram em Yoko e em mim,
desde que estamos juntos. Nós dois ‘nos elevamos acima disso’ algumas
boas vezes - e perdoamos vocês dois -, então é o mínimo que podem fazer
por nós, seus nobres. Linda -se você não liga para o que eu digo -cale a
boca! - deixe Paul escrever - ou algo assim”.
O termo “cartas” é amplo. Listas de supermercado, memorandos
empresariais, resenhas, cartas aos fãs e cartas pessoais compõem o
livro. E pelo fato das mais longas, em que John revela sua personalidade
serem escassas, As Cartas de John Lennon tem momentos
eletrizantes em meio a um mar de trivialidades, que, para os
não-iniciados na história do rock, são costuradas por uma didática
narrativa de Davies, sobre o contexto de cada correspondência.
Transcritas e fotografadas nas páginas do livro, as cartas fazem
parte do mercado de memorabilia de John. Por isso, aquele tom de
adoração, comum em quase todos que presenciaram os Beatles em seu ápice,
é recorrente. Às vezes, uma bilhete de coisas a fazer, é apenas um
bilhete. Para Hunter Davies, pode ser um recado dos deuses.
fontes: http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,livro-reune-cartas-de-john-lennon,942472,0.htm (mais fotos do livro) e http://frasesdavida.wordpress.com/2012/10/09/as-cartas-de-john-lennon-e-os-meus-postais-tambem/ (contém uma entrevista com Hunter Davies sobre o livro) e http://www.hindustantimes.com/Books/Chunk-HT-UI-BooksSectionPage-LiteraryBuzz/When-John-Lennon-scolded-Paul-McCartney/Article1-941962.aspx
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