Os
Beatles chegaram aos EUA a 7 de Fevereiro de 1964, uma invasão
britânica que comemora 50 anos e foi testemunhada por Larry Kane, o
único jornalista americano que acompanhou as digressões de 64 e 65.
“Ticket To Ride” é o título do livro que escreveu depois de regressar a
casa e que agora é reeditado em versão ebook. Em tempos de aniversário
redondo, Kane fala com Tiago Pereira sobre os quatro fabulosos e admite
que é um dos homens com mais sorte no mundo
Tem pinta e voz para apresentar o "60 Minutos". Sempre foi repórter
de "coisas sérias e complicadas", como nos diz. Os Beatles também o
foram, mas de outra forma. Conheceu-os pouco depois de terem chegado aos
EUA, há 50 anos (passam no dia 7), e acompanhou-os nas duas turnês
americanas que fizeram de seguida - um privilegiado que depois se
transformou em fã, livros publicados incluídos. "Ticket To Ride", "When
They Were Boys" e "Lennon Revealed" estão agora disponíveis em formato
digital, para acompanhar um aniversário especial. Começamos a conversa
com um esclarecimento, para que não restem dúvidas.
Esteve mesmo em todas as etapas das turnês de 64 e 65?
Estive. Eles tiveram duas turnês. Conheci-os em 16 de Fevereiro de
1964, em Miami, onde fizeram o segundo programa com o Ed Sullivan.
Antes, o meu trabalho na rádio WFUN estava mais relacionado com a crise
cubana, com a morte do presidente Kennedy, a guerra no Vietnã e o
movimento pelos direitos civis. Foi nessa altura que, depois de sabermos
que os Beatles vinham aos EUA, me pediram para escrever uma carta ao
manager da banda, o Brian Epstein. A ideia era pedir uma entrevista
quando eles passassem por Jacksonville. Tinha 21 anos.
E teve resposta?
Sim, Brian Epstein escreveu-me de volta, uma carta inesperada.
Convidava-me para a travelling party dos Beatles pela América. Por 3 mil
dólares, o custo das viagens e dos hotéis. Falei com os meus chefes,
eles acharam incrível que alguém pudesse acompanhar o grupo. Disse que
queria ir. Eles disseram que talvez fosse melhor ir alguém ligado à
música, mas eu fi-los perceber que em Novembro eles já não iam estar cá e
seriam esquecidos, não era assim tão importante que estivesse alguém
mais especializado no assunto. Isto já revelava muito do meu jeito para
prever o futuro.
Ninguém esperava que os Beatles se tornassem tão influentes?
Não naquela altura. A verdade é que, em 1964, ninguém se apercebera
de que os Beatles seriam quem acabaram por ser, a América não acreditava
neles. Na altura falava mais alto a tensão sexual das fãs, que achavam
que eles cantavam para cada uma delas, pessoalmente. Primeiro apareceu a
adoração. Mais tarde percebeu-se que aquela música era incrível. Mas
posso dizer que só por volta de 1980 é que os Beatles se tornaram
icónicos em todo o mundo. Se eu soubesse, em 1964, o que acabou por
acontecer, teria gasto todo o meu dinheiro numa câmara para registar o
que vi.
Que roteiro fez com os Beatles?
Bom, chegaram a Nova Iorque e fizeram o programa do Ed Sullivan;
deram dois pequenos concertos, organizados por um tipo chamado Sid
Bernstein, um com meia casa, no Washington Coliseum, o outro teve umas
600 pessoas, no Carnegie Hall. Mais tarde conheci os Beatles no
aeroporto de Miami. Fui com eles até ao hotel Fountain Blue, onde deram
uma conferência de imprensa. Assisti à gravação do programa e depois
embarquei na turnê com eles. Começou a 18 de Agosto de 1964. Em 1965
voltei a acompanhá-los em todas as datas. Pelo meio estive nas Bahamas,
onde eles rodaram o "Help". Voltei a vê-los em algumas ocasiões. E ainda
que em 1967 tenha começado a minha carreira como pivô de telejornais.
Mesmo depois do que aconteceu em 1964 e 1965, acabou por nunca escolher o jornalismo musical.
Não, nem nunca foi opção. Mas, com mais de 40 anos disto, ainda hoje o
que mais querem saber sobre a minha carreira são os pormenores dos meus
dias com os Beatles.
É natural, até porque é um dos tipos com mais sorte no mundo.
É verdade, mas na altura não fazia ideia nenhuma disso. É algo que
acontece muitas vezes no jornalismo. Na altura tinha 21 anos, não tinha
nada a ver com aqueles rapazes. Cabelo curto, de estilo conservador -
não necessariamente no aspecto político. Eles eram da minha idade, mais
ou menos, mas muito diferentes. Mas dei por mim encantado com a
maturidade que eles tinham com aquela idade, no meio de tanto circo
mediático.
Por exemplo?
Em 1964, a segunda paragem da turnê foi Las Vegas. Disseram-me da
rádio que no sítio onde eles iriam tocar em Jacksonville, na Florida, o
estádio Gator Bowl, o público iria estar separado entre brancos e
negros. Disse isso à banda e eles levantaram-se, um por um, e disseram:
"Avisem que não vamos tocar lá." Achei aquilo corajoso, vindo de uns
jovens ingleses que queriam ser famosos. Uns dias depois foi anunciado
que não iria haver separação alguma entre o público. E eles tocaram.
Preocupavam-se com toda a gente, mesmo com o estatuto de estrelas que já
tinham.
Não se deixavam levar pela fama, portanto.
Nada. Recordo-me que em todas as datas de ambas as digressões havia
artistas para a primeira parte. E gente conhecida. A Jackie DeShannon,
os Righteous Brothers, The Exciters. Mas ninguém os queria ver, o
público gritava "queremos os Beatles" enquanto eles tocavam. Mas os
próprios Beatles, todas as noites, antes de me atacarem com cubos de
gelo por dentro da camisa ou puré de batata no cabelo, falavam com quem
fazia a primeira parte, tentando explicar o que iria acontecer,
mostravam que se preocupavam com os artistas que os acompanhavam.
O que pensavam os americanos dos Beatles?
A verdade é que as pessoas não andavam loucas a pensar nos Beatles.
Eles chegaram aos EUA no início de 1964, pouco tempo depois da morte de
John F. Kennedy, havia muita tensão e preocupação no ar. Antes de me
encontrar com eles, o meu pai disse-me: "Larry, tem cuidado, esta gente é
uma ameaça para a sociedade." E era assim que a maioria dos adultos via
os Beatles, como coisa de adolescentes, artistas em formato pastilha
elástica, sem futuro.
Alguma coisa aconteceu, porque essa imagem não durou muito tempo.
Tudo mudou quando eles apareceram no "Ed Sullivan", o maior programa
da televisão americana, uma jogada de génio do Brian Epstein. Às oito da
noite, em três domingos consecutivos. A maioria dos americanos pensava
nos Beatles com cepticismo, basta recordar as conferências de imprensa
que eles deram - mais uma vez, está tudo no YouTube. "Vocês lavam o
cabelo?", por exemplo, era a pergunta mais frequente. E isto quando
aqueles quatro rapazes tinham tanto para contar.
Conseguiu conhecê-los bem? Como eram eles, à parte do que era mostrado ao público?
Eles eram muito diferentes e todos especiais. O Ringo tornava-se mais
reclusivo à medida que o tempo passava e era o segundo Beatle mais
intelectual, ainda que nunca tenha passado essa imagem. E também o mais
desperto para as questões antiguerra e a favor dos direitos civis, logo
depois de Lennon. Já McCartney, se nunca tivesse sido músico teria dado
um relações públicas fora de série. Ele sabe comunicar, sabe fazer amor
com uma plateia só através dos olhos. Queria ser amado e sempre foi
bondoso e generoso. Ao mesmo tempo, sempre quis ser o líder. E a verdade
é que sempre fez o trabalho pesado quando surgia um problema.
E George?
George era o mais surpreendido com tudo o que se passava, era também o
mais novo. Mas ele tinha razões para estar espantado com o que viu na
América.
A escala de tudo o que os rodeava era outra.
Completamente. Antes de chegarem aos EUA, a maior plateia para a qual
alguma vez tinham tocado era de 1500 pessoas, mais coisa menos coisa.
No primeiro grande concerto que deram nos EUA, a 19 de Setembro de 1964,
em São Francisco, logo aí tocaram para 19 mil pessoas. Claro que eles
tinham trabalhado para isto, desde 1956, 57. Estiveram em Hamburgo
durante semanas, onde viveram à margem de tudo, entre ameaças de
gangsters e injecções de penicilina. Fizeram-se grandes no meio de tudo
isto. Entre 1957/58 e 1963, deram perto de 1600 concertos. Alguns para
20 pessoas, é certo, mas isso fez com que, quando atuaram nos grandes
palcos americanos, a certeza era a de que iriam tocar bem. Em Chicago,
Milwaukee, Nova Iorque, Detroit, o que tocavam era o que estava no
disco. Mesmo quando toda a gente estava aos gritos.
A primeira vez que apareceram na televisão americana, esse momento teve impacto imediato no público?
Claro que sim. Os números históricos dizem que os Beatles foram
vistos na televisão, no "Ed Sullivan Show", por 64 milhões de pessoas,
isto em cada um dos três programas em que participaram. Num inquérito
feito mais tarde, a estimativa apontou para que 45% da população
americana tenha visto os Beatles naqueles três domingos. Na altura não
havia cabo, havia a NBC, a ABC e a CBS, onde passava o "Ed Sullivan".
Lembro-me de, durante os anos 50, vermos em família o programa, todas as
semanas.
Onde estava quando viu o primeiro programa com os Beatles?
Estava com a minha mãe, que disse "estes tipos são incríveis". E ela
tinha bom gosto, dissera o mesmo quando o Elvis apareceu. Ainda que o
meu pai achasse que eles iriam destruir o mundo.
John era o seu Beatle favorito?
Os outros nem tinham hipótese. Ele era o mais complicado, o mais
zangado, podia ser um tipo terrível, violento, mas ao mesmo tempo
preocupava-se com aqueles de quem gostava. E dizia tudo o que sentia, o
que pode ser excitante e perigoso. Aprendi algumas coisas com ele.
Talvez a mais importante tenha sido a capacidade de perceber que há
momentos em que é melhor não dizer determinadas coisas, mesmo que sejam
verdade. Porque ele era incapaz de o fazer. Teve uma infância má, estava
predestinado a falhar, e fugiu a tudo isso que o assombrava.
Manteve contato com ele, depois das turnês de 64 e 65?
O último contato que tive com John Lennon aconteceu no final dos
anos 70, quando ele esteve no meu programa, já em Filadélfia, a
apresentar o tempo. Era uma maratona de beneficência - estou certo que
está tudo no YouTube. Isto aconteceu numa sexta-feira à noite e
apareceram 14 mil pessoas à procura do John Lennon. Ele quis fazer o
tempo porque não se quis misturar com as más notícias habituais de um
telejornal.
Voltando aos quatro, como eram eles em turnê?
A verdade é que eles tinham tudo muito bem definido, horários para
todas as tarefas, não podiam sair do planeado. Uma noite saímos de
Denver para Cincinatti. Parámos em Nova Iorque, à uma da manhã, chegámos
ao hotel às duas. Por norma, nas diferentes cidades, eles tinham
companhia feminina, não sei como tudo acontecia porque havia muito
cuidado em volta disso. Em todas as cidades conheciam gente do clube de
fãs, mas havia precaução para que nada envolvesse menores de idade. De
qualquer maneira, eu não era o tipo de jornalista que ia aos quartos
deles ver o que se passava. E, na verdade, três deles eram solteiros na
altura. O outro, Lennon, não estava preocupado. John disse mais tarde
que tudo parecia um filme do Fellini.
Que lugar ocupava durante os concertos?
Isso depende. Por exemplo, no concerto no Shea Stadium fiquei no que
aqui chamamos de "dug out", a área que nos jogos de baseball é ocupado
pela equipe e pelo treinador. Foi ótimo porque consegui perceber que
discutiram antes de subir ao palco, enquanto decidiam o que iriam
vestir. Depois foi vê-los atuar perante 65 mil pessoas.
Reza a história que foi um concerto caótico.
Caótico não chega para descrever o que aconteceu. Ainda bem que
estávamos em Nova Iorque e que havia muitos polícias disponíveis. Aquele
exército de adolescentes estavam prontom para saltar das bancadas. E a
limpeza, depois do concerto acabar, foi uma operação memorável.
Nunca chegava a ser assustador?
Claro que sim. Em Vancôver, por exemplo. Tocaram no Empire Stadium,
com cerca de 21 mil pessoas. Estava no campo e, de repente, um terço da
plateia decide avançar em direcção ao palco. Estamos a falar de 7 mil
pessoas. Os Beatles tiveram de fugir do palco e tudo acabou ali. Houve
centenas de pessoas no hospital, foi complicado. E isto no Canadá,
supostamente é tudo mais calmo.
Como funcionava a sua rotina?
Andava com um gravador de 20 quilos sempre comigo e, no fim do
concerto, o normal era irmos de imediato para o avião, dormíamos na
cidade do concerto seguinte. Ou seja, chegávamos sempre muito tarde. No
avião era impossível trabalhar porque ainda não era a jato e era muito
barulhento. Só no hotel conseguia trabalhar. Só me despachava aí às
cinco da manhã. Dormia até às 10, 11 da manhã, encontrava-me com a
banda... por vezes, os concertos eram durante o dia, noutros locais
haviam duas sessões, à tarde e à noite. Mas espera, posso contar-te uma
história sobre o avião?
Claro.
OK. Numa viagem entre Minneapolis e Portland, já em 1965, há um
incêndio no avião, do lado direito, no motor. Sabia que não era muito
perigoso, mas foi preciso seguir as regras de aterragem de segurança.
Enquanto descíamos, George dizia: "Se alguma coisa acontecer, salvem
primeiro os Beatles e crianças." Bom, correu tudo bem, mas o mesmo avião
despenhou-se numa montanha no Oklahoma um ano depois. Levava 94 soldados
e uma tripulação que incluía dois membros desse mesmo voo com os
Beatles. Já não bastava tudo o que já tinha acontecido... nunca mais
ouvi as canções deles da mesma maneira.
Já agora, das canções dos Beatles, qual é a sua favorita?
Escolho uma todas as semanas. Mas tendo a balançar entre o "Across
The Universe" e o "Here, There and Everywhere". Mas ambos sabemos que
essa pergunta não se faz.
Comentário:
Parabéns ao Tiago Pereira pela excelente entrevista e matéria! Está 10!
fonte: Jornal i
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